C S Lewis, o Mito e o Cristianismo

  1. Introdução: A Questão da Racionalidade e a Tese de Popper-Bartley
  2. A Questão do Mito e da Religião: De Hume ao Jovem C S Lewis
    1. A Tese de Hume
    2.  O Jovem C S Lewis se Declara Ateu
  3. Conclusão: A Questão da Verdade e o Desafio do C S Lewis Maduro

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1. Introdução: A Questão da Racionalidade e a Tese de Popper-Bartley

Uma das grandes contribuições de Karl R. Popper ao debate epistemológico foi deixar claro que há uma distinção clara, que deve ser observada, mas raramente o é, entre duas formas de encarar as ideias que ele chamava de “contexto da descoberta” e “contexto da validação”.

Uma coisa é procurar entender como uma ideia surge (é descoberta ou é inventada), explicando a “gênese” da ideia, seja na história, seja na sociedade, seja na mente do indivíduo. Para ele, disciplinas acadêmicas como história, sociologia e psicologia frequentemente procuram mostrar isso. Essas três disciplinas pretendem, hoje, ter caráter científico.

Outra coisa é procurar determinar se uma ideia, conjetura, hipótese, tese, doutrina, teoria, visão de mundo, independentemente de como ela surgiu, é válida, justificada, verdadeira, sobre que fundamentos e evidências se sustenta, etc.

Para Popper, a epistemologia, que é uma disciplina acadêmica, que se caracteriza como parte da filosofia, e não da ciência, se ocupa das ideias, apenas e tão somente, no contexto da validação. No entender de Popper, o contexto da descoberta não tem interesse nenhum para a epistemologia. [Por isso, é uma lástima que seu primeiro livro publicado, em Alemão, com o título de Logik der Forschung (Lógica da Pesquisa, Lógica da Investigação) tenha sido traduzido para o Inglês com o título de The Logic of Scientific Discovery. Houve duas impropriedades na tradução do título, se encararmos a linguagem com seriedade. Primeira: em vez de “Discovery”, deveria estar “Research” ou “Investigation”. Segunda: o termo “Scientific” surgiu do nada, não está no título original.]

Pode-se tentar argumentar que o conteúdo do livro são as ciências naturais, em especial a Física, e isso seria verdade. Mas a tese Popperiana não se limita às ciências naturais, muito menos apenas à Física. Aplica-se também às Ciências Biológicas e às Ciências Humanas e Sociais. No próprio livro em foco, ele discute o Marxismo, que se pretende científico, dentro das Ciências Humanas e Sociais (consistindo principalmente de teses históricas e sociológicas), e a Psicanálise, que alguns pretendem seja parte das Ciências Humanas. Popper tenta mostrar, no livro, que as principais teses do Marxismo e da Psicanálise não são válidas, porque são falsas, já tendo sido testadas empiricamente e refutadas pelos fatos. O critério de validade que Popper propõe e utiliza é centrado na testabilidade empírica de uma ideia, etc. e sua falsificabilidade por fatos — “testabilidade” significando que é possível submeter a ideia a testes, de preferência rigorosos, em um contexto empírico, e “falsificabilidade” significando que é possível, em princípio, mesmo que não ainda nas condições existentes, que fatos a refutem. Como as ciências, em geral, se pretendem válidas, e prometem revelar a verdade sobre a realidade, o fato de ideias, que se pretendem científicas, terem sido testadas empiricamente e falsificadas, isto é, desmentidas pelos fatos, prova que elas são falsas, e, por conseguinte, não podem ser consideradas válidas e pleitear a nossa aceitação.

Em escritos subsequentes, Popper aplica sua tese à Biologia, à Teologia, e a outras áreas. Na verdade, ele propunha que sua tese, que ele veio a chamar de Racionalismo Crítico, tivesse aplicação universal — isto é, se aplicavasse a qualquer tipo de ideia.

[Em um parêntese, houve até um desentendimento entre Popper e o meu orientador de doutorado, que havia sido orientado por Popper no doutorado dele, Willliam Warren Bartley, III (W.W. Bartley, III), decorrente do fato de que Bartley levantou a questão se o Racionalismo Crítico de Popper, aplicado a si mesma, se revelava testável e falsificável. Popper, em um primeiro momento, chegou a admitir, em The Open Society and its Enemies, livro subsequente, publicado ao final da Segunda Guerra, que o Racionalismo Crítico era um postulado ou pressuposto fundamental, essencial mesmo, de qualquer discussão de ideias e, por causa disso, a sua teoria não poderia ser aplicada a si mesmo sem que se cometesse a falácia do petitio principii — pressupor aquilo que se deseja demonstrar ou provar. Para Popper, a opção pela racionalidade crítica é um comprometimento último (ultimate commitment) inevitável de qualquer pessoa que se pretenda racional e crítica, e que, como tal, pode até ser descrito como um ato de fé.  Bartley questionou essa explicação de Popper em seu livro Retreat into Commitment, que causou razoável mal estar no arraial popperiano e temporariamente interrompeu o excelente relacionamento de Popper com Bartley (que era considerado in pectore o seu “discípulo amado” — condição que voltou a ter, quando fizeram as partes, tanto que Bartley foi escolhido por Popper para ser o seu Literary Executor, ou Testamenteiro Literário).

Para quem aceita a tese ou teoria popperiana, como o qualificativo bartleyano, de que o Racionalismo Crítico pode e deve ser aplicável a si mesmo, no sentido de que, se qualquer pessoa vier a refutar a tese ou teoria, as pessoas que a adotam serão obrigadas a rejeitá-la, segue uma série de implicações, algumas das quais ficarão claras na sequência.

2. A Questão do Mito e da Religião: De Hume ao Jovem C S Lewis

Minha tese de doutorado, orientada por Bartley, foi sobre David Hume, o filósofo escocês, e seu tratamento filosófico-epistemológico da teologia e da religião.

Na época de Hume, o século 18, o sustentáculo da teologia, o que supostamente lhe dava validade e credibilidade, era o binômio razão e revelação (vide Tomás de Aquino, John Locke, etc.): a razão era manifestada, principalmente, nos argumentos filosóficos para demonstrar a existência de Deus, em especial no chamado argumento empírico, ou a posteriori, baseado na ordem, ou design, a saber, o ajuste perfeito entre meios e fins, que a própria ciência natural viria demonstrando existir no universo, e a revelação era manifestada, na Bíblia, pelo registro de que Jesus de Nazaré realizou inúmeros milagres, que comprovariam a veracidade de suas afirmações e reivindicações. Note-se que esses dois pilares eram usados para supostamente demonstrar a veracidade, e, por conseguinte, a validade, da teoria ou visão cristã do mundo.

Hume, como eu procurei demonstrar na minha tese, destruiu essa tese teológica relativa aos dois pilares da teologia As evidências e os argumentos que Hume usou contra essa tese não vêm ao caso aqui. O que quero ressaltar é que a maior parte da crítica humeana à teologia é feita dentro do contexto da validação.

No entanto, Hume, estando convencido de que havia mostrado que a teologia cristã não tinha qualquer sustentação filosófico-epistemológica, e, por conseguinte, não poderia ser considerada válida e verdadeira, saiu da epistemologia e da filosofia e entrou na história e na sociologia (ele também era historiador, autor de uma das mais famosas Histórias da Inglaterra) para investigar como é que tanta gente, no mundo inteiro, acreditava na religião cristã, e aceitava alguma forma de teologia cristã, se as teses fundamentais do Cristianismo eram clara e evidentemente insustentáveis, do ponto de vista filosófico-epistemológico.

(Na realidade, Hume supunha ou conjeturava que a religião era um fenômeno universal, e que as conclusões a que ele havia chegado acerca do Cristianismo seriam alcançadas, mutatis mutandis, na investigação de outras religiões também. Mas ele só havia investigado a cristã.)

Em seu livro A Natural History of Religion, Hume propôs uma teoria científica, ou pré-científica, da religião, em geral. O termo “natural” aqui indica que, nesse livro, ele estava operando no contexto da descoberta, não no contexto da validação, embora ele, evidentemente, tenha formulado uma conjetura ou teoria e procurado levantar evidências empíricas que lhe davam sustentação, mostrando, ao mesmo tempo, não haver evidências que a refutassem.

O que vou resumir aqui, na primeira parte deste capítulo, são as ideias propostas por Hume que, como dizia Rubem Alves,  eu, ao ler sua obra, ingeri, mastiguei, degluti, e, me livrando do que não me servia, incorporei o resto ao meu DNA.

Na segunda parte deste capítulo, vou tentar relacionar esta discussão, envolvendo Popper e Hume, na discussão das ideias de C S Lewis acerca do mito e da religião cristã.

A. A Tese de Hume

Segundo Hume, que era um estudioso da natureza humana (seu livro mais importante se chama A Treatise of Human Nature), faz parte da natureza humana querer entender o mundo em que o ser humano vive. Por isso, ele se faz perguntas.

Ele se pergunta, por exemplo, como é que surgiu este mundo em que vivemos, a Terra, bem como o céu, o Sol, a Lua e as estrelas. Ele se pergunta como é que surgiram, aqui na Terra, os seres vivos, as plantas, os animais, em geral, o ser humano. Ele se pergunta se existem outros seres vivos que são puramente espirituais, e que não têm corpo, por conseguinte não sendo visíveis, etc. Ele se pergunta por que algumas pessoas são bem sucedidas na vida, e outras, não, por que algumas são religiosas e outras, não, etc.

Mas não há nenhum sentido em fazer perguntas como essas se a gente não tentar encontrar ou formular respostas para elas. Essas respostas em geral são formuladas na forma de conjeturas, hipóteses e teorias, que vão se fundindo em histórias e narrativas, que, oportunamente, se tornam formas razoavelmente complexas de ver e entender o mundo.

As primeiras respostas são tipicamente antropomórficas. Conjetura-se que as coisas aqui na Terra são como são porque há seres espirituais, invisíveis e intangíveis, que controlam o que aqui tem lugar. Só que é muito difícil imaginar um ser puramente espiritual, totalmente invisível e intangível. Assim sendo, os seres espirituais acabam recebendo características humanas, não só mentais (como conhecimento, sabedoria, criatividade, imaginação, capacidade de interpretar coisas que parecem obscuras, etc.) e emocionais (como coragem, amor, inveja, despeito, ciúme, raiva, ódio, vingança, etc.) e até mesmo corpóreas (Zeus, o deus mais importante, só pode ser forte e poderoso; Afrodite, a deusa da beleza, só pode ser linda; Vênus, a deus do amor e do sexo só pode ter uma aparência cativante e sedutora; Baco, o deus do prazer, só pode ter uma cara meio debochada, etc.). Usei aqui exemplos da mitologia grega, mas as mitologias nórdicas, romanas, etc., não são muito diferentes.

Essas mitologias mais primitivas são todas, invariavelmente, politeístas, como Hume perspicazmente apontou. Pode haver um deus maior, que de certo modo comanda o restante, mas há deus para cada dimensão da vida: a caça, a pesca, o colhimento de frutos das árvores ou do chão, etc. Até, assim que os humanos se tornaram sedentários, e começaram a cultivar plantas para seu sustento e a domesticar e criar animais para seu sustento e para seu uso em outros áreas, havia um deus para a agricultura e para a agropecuária.

Não só cada atividade tinha seu deus, mas cada povo tinha a sua coleção própria de deuses, o seu Olimpo.

A grande inovação do povo semítico, que se tornou o povo judeu, foi, de certo modo e até certo ponto, simplificar a sua mitologia, nela inserindo apenas o deus maior, que seria o criador, sustentador e controlador de tudo, centralizando o poder criador, sustentador e controlador (o que posteriormente se chamou de providência). Mas, inicialmente, esse deus maior tinha uma série de seres espirituais subordinados (anjos), dentre os quais um se insubordinou (Lucifer) e acabou levando vários com ele (espíritos maus), criando um centro de anti-poder, e estabelecendo um conflito permanente entre o Bem e o Mal. Mas os judeus nunca deixaram de crer que o deus do bem era maior e mais poderoso do que o(s) outro(s) e, no final o(s) venceria, e que o deus do mal, de certo modo, operava dentro de limites que lhe eram fixado pelo deus maior… A serpente, no entanto, representando o poder do mal, conseguiu seduzir os primeiros humanos criados, fazendo com que desobedecessem o deus maior… O resto da história — um drama! — é conhecido.

 Na mitologia judaica, não há, inicialmente, um monoteísmo muito forte e coerente. Reconhece-se a existência de outros deuses, mas sente-se a necessidade de adorar apenas o deus maior, que se acredita mais forte e poderoso (mesmo que, em diversos momentos, haja algum tipo de apostasia). “Não terás outros deuses diante de mim” é o primeiro mandamento do conjunto de mandamentos do deus maior, mas ele é um mandamento que assume que existem outros deuses, mas que eles não devem ser seguidos e adorados… Além disso, há o chefe maior do antipoder (com poder até certo ponto delegado), que tenta subverter a autoridade do principal e maior deus judeu… Gradativamente, à medida que as crenças dos judeus foram evoluindo, o monoteísmo foi se aperfeiçoando, no entanto…

Quando surge o Cristianismo, originalmente como uma seita judaica, este deus maior dos judeus é adotado e apropriado, mas, com o tempo, ele ganha um filho, e, com mais tempo, o filho se torna um igual do pai, e ganha um sucessor, que com o Filho e o Pai formam um Triumvirato — ou melhor, uma Trindade… Parece que o politeísmo é ressuscitado dentro do Cristianismo, mas os cristãos consideram que o “Triteísmo” é uma heresia, e que o que há é uma Trindade, que é uma entidade só — um deus só — mas composto de três pessoas diferentes… Convenhamos que a mitologia cristã é uma complicação considerável quando comparada com a mitologia judaica.

É assim, enfim, que surgem os mitos, que geram narrativas originalmente poéticas e, depois, se convertem em prosa, e, gradativamente, se tornam, tanto quanto possível, teses filosóficas… O termo “mitopoético” vem daí. As narrativas em prosa, com o tempo, se tornam filosofia, ou uma parte da filosofia que pode ser chamada da teologia…

O resto nós também conhecemos.

B. O Jovem C S Lewis se Declara Ateu

Quando C S Lewis nasceu, no finzinho do século 19, a mitologia cristã já havia se tornado Teologia sofisticada há muito tempo. Toda a narrativa dessa mitologia havia se transformado em uma série de teses históricas e filosóficas (vale dizer, teológicas).

Inteligente como ele era, e com uma mente que, além de inteligente, era altamente imaginativa e criativa, C S Lewis muito cedo, por volta dos cinco anos, começou, aproveitando leituras de textos da mitologia grega, romana e, principalmente, nórdica, a inventar histórias com seres imagináveis, nem todos muito parecidos com humanos, muito deles assumindo a forma de animais. Muito cedo mesmo, antes até de ele ir para a escola, o que se deu quando tinha quase dez anos. Suas produções originais eram, talvez, risíveis, quando lidas da perspectiva dos adultos. Mas ele era uma criança, com uma idade em que, no Brasil, a maior parte das crianças nunca leu um livro inteiro ainda, e, algumas, nem conseguiriam ler um livro, ainda que o desejassem.

C. S. Lewis nasceu na Irlanda, em 29.11.1898 — no final do século 19. Na plano da História das Ideias, muita gente dá mais importância ao século 18, o chamado Século das Luzes — donde o Iluminismo — e a Idade da Razão, em que imperaram o Racionalismo, o Empirismo, o Criticismo, do que ao século 19, século em que imperaram o Romantismo e o Utilitarismo e surgiu o conflito entre o Liberalismo e o Socialismo. Mas o século 19 é também o século em que Feuerbach afirmou que, longe de ser o homem uma criação de Deus, Deus é que era uma criação do homem, e a teologia não passava de uma antropologia disfarçada; em que Marx declarou que a religião era o “ópio da sociedade”, um conjunto de ideias, valores e práticas que dessensibilizava o homem em relação à sua opressão e à sua miséria; e em que Nietzsche proclamou a “morte de Deus”… A. N. Wilson, o mesmo biógrafo que escreveu uma biografia em que critica bastante a teologia de C. S. Lewis, também escreveu uma “biografia” do século 19, a que deu o título de God’s Funeral (Norton, New York & London, 1999 — cento e um anos depois do nascimento de Lewis).

Na história de sua conversão do Ateísmo para o Cristianismo, que acabou sendo uma autobiografia que cobre a primeira metade de sua vida, Surprised by Joy: The Form of my Early Life, publicada em 1955, C. S. Lewis descreve e, até certo ponto, interpreta, sua infância, adolescência e juventude. Sua conversão para o Cristianismo é em geral tida como concluída por volta de 1931, quando ele tinha de 32 para 33 anos. O livro foi publicado em 1955 — quando ele tinha 56 anos. Muito tempo depois, mas Lewis tinha uma memória fenomenal.

C. S. Lewis nasceu em Belfast, na província de Ulster, em um lar cristão, no Norte da Irlanda (que ainda não era formalmente a Irlanda do Norte porque a Irlanda não havia ainda se dividido em dois países). Belfast era naquela época (1898) a maior cidade do Norte da Irlanda — a parte predominantemente protestante (vale dizer, anglicana) da Irlanda, que veio a se dividir em dois países nos anos 1920-1923. Na divisão, a parte maior da Irlanda, constituída pelo Centro e Sul da Ilha da Irlanda, se tornou um país autônomo e independente, que hoje é chamado de a República da Irlanda. A parte que se separou e se proclamou independente do Reino Unido era predominantemente católica (quase 80% da população é ainda católica). Os pais de Lewis eram membros da Igreja Anglicana, que, por causa do conflito com a Igreja Católica, majoritária na parte Sul da Irlanda, era, possivelmente, mais protestante do que a Igreja Anglicana da própria Inglaterra, que era predominantemente protestante e não sofria tanto o antagonismo dos católicos como o Norte da Irlanda, em que católicos e protestantes simplesmente se detestavam. Muitos, no Norte da Irlanda, questionavam até mesmo se os católicos eram cristãos…

Lewis afirma que ambos os seus pais, mesmo que não fossem exatamente ricos e cultos, eram bem de vida, no aspecto financeiro, e bem letrados e livrescos, no aspecto cultural. Eles eram chegados à leitura e aos livros, bem como à boa música. Ambos os pais de Lewis haviam feito curso universitário — a mãe mais chegada para a matemática e a lógica, mas uma leitora voraz de grandes romances, como os de Tolstói (gosto C. S. Lewis herdou), e o pai,  mais chegado para o direito. Segundo Lewis, se seu pai tivesse tido um nível socioeconômico mais elevado, e tivesse um senso de humor menos agressivo, poderia ter sido um político parlamentar, pois tinha grande presença, voz altissonante, dom para oratória e eloquência, capacidade de argumentação e rapidez de raciocínio, bem como excelente memória (características e competências que C. S. Lewis certamente herdou).  As experiências de cunho estético e artístico de C S foram poucas, fora da música, nessa primeira fase de sua vida.

Eis como Lewis descreve sua relação com a religião na infância:

“Se minhas experiências estéticas foram raras, experiências religiosas simplesmente inexistiram em minha infância. Algumas pessoas ficaram com a impressão, ao ler meus livros, que eu fui criado em um ambiente bastante puritano, cheio de restrições e exigências. A impressão não corresponde aos fatos. Meus pais me ensinaram as coisas costumeiras acerca da religião cristã, instavam para que eu fizesse minhas orações, e, no devido tempo, frequentasse a igreja. Eu naturalmente aceitava o que se esperava de mim, mas não consigo me lembrar de que tivesse muito interesse por essas práticas religiosas convencionais. Meu pai, longe de ser puritano, tinha preferências mais próximas de uma religiosidade mais formal (high church), quase o oposto daquela que mais tarde eu vim a adotar. Ele gostava de tradições e rituais e apreciava a beleza da linguagem contida na Bíblia e no Livro de Orações (coisas que eu só vim aprender a apreciar bem mais tarde em minha vida). Ele também era pouco chegado a questões teológicas e metafísicas. Da religião de minha mãe eu não consigo me lembrar de quase nada. Mas, em resumo, a religião da minha infância nada teve que me levasse a me interessar por um outro mundo”.

Não houve experiências religiosas, mas houve livros. Em 1905, ano em que ele ia fazer sete anos, a família de C. S. Lewis se mudou para uma casa bem maior, que, para a criança, mais parecia uma cidade do que uma casa.

“Nela havia livros por toda parte. Meu pai comprava todos os livros que ele resolvia ler e nunca se livrava de nenhum livro, depois de lê-lo. O resultado é que havia livros em seu escritório, livros na sala de lazer, livros (em duas fileiras) nas grandes estantes  dos halls e corredores, livros nos quartos de dormir, livros no banheiro, livros em pilhas da minha altura no sótão, livros de todos os tipos, refletindo todos os estágios dos diversos interesses, ainda que passageiros, de meus pais — livros apropriados para a leitura por crianças e livros enfaticamente não apropriados para elas. Mas nenhum dos livros me era proibido por meus pais. Nas tardes chuvosas, aparentemente intermináveis, eu ia pegando volume atrás de volume das estantes. E tinha sempre a certeza de encontrar um livro cujo conteúdo fosse novo para mim, da mesma forma que uma pessoa que entra em um campo tem certeza de encontrar diversos tipos de vegetação que nunca viu antes. Nunca me ocorreu onde é que todos aqueles livros estavam antes de nos mudarmos para a casa nova — até que eu comecei a escrever este parágrafo. Não tenho a menor ideia de qual seja a resposta.”

Entrementes, o irmão de C. S. Lewis, três anos mais velho, foi mandado para um internato, e uma nova fase de sua educação começou — em casa mesmo. Sua mãe lhe ensinava Latim e Francês, e ele ganhou uma governanta excelente — só que presbiteriana… Foi com ela que, em pequenos sermões entremeados aos exercícios de aritmética e de leitura e escrita, ele veio a ter conhecimento da existência “de um outro mundo”, um mundo de ajuste de contas, em que receberíamos punições e recompensas por nossas ações neste mundo, dependendo de como viessem a ser julgadas as nossas ações (e até os nossos pensamentos!). Mas o principal de sua educação veio de suas leituras e da colocação em prática de seus interesses, alimentados por uma prodigiosa imaginação.

Uma dificuldade nos polegares (cuja principal junta não dobrava, em ambas as mãos), provavelmente herdada de seu pai, fez com que C. S. Lewis tivesse dificuldade para fazer coisas com as mãos (trabalhos manuais) — mas não o impediu de escrever (porque, quando se escreve, essa junta não é flexionada), e isso fez com que ele, cada vez mais, se dedicasse à leitura e à escrita, e não a atividades manuais ou de cunho prático e utilitário. A ausência do irmão na casa fez com que ele, na solidão decorrente de ser a única criança em uma casa enorme, recorresse à imaginação. Suas primeiras histórias, sobre animais, bem como sobre cavaleiros em armaduras, começaram a ser escritas bem cedo. E elas versavam sobre uma realidade imaginária que ele chamou de “Terra dos Animais”. Entre seis e oito anos ele vivia mais dentro dessas realidades construídas pela sua imaginação do que na “realidade real” de sua vida doméstica, sem muita companhia interessante. O menino se ensimesmou. Passou a viver mais na realidade criada pela sua mente do que naquela realidade que lhe era imposta pelo mundo exterior.

Começa aí seu interesse por mitos e outras histórias fantásticas — que ele sempre reconheceu como tendo sido criadas pela imaginação de alguém, e, por conseguinte, não como histórias verídicas, mas como histórias inventadas… Uma história inventada não é como uma fantasia em que você acredita ou faz de conta que está participando. Na história inventada você é o criador daquele mundo, não um personagem que está dentro dele, como no caso da fantasia. Na história inventada você está em controle, porque foi você que a criou — e é você que tem o poder de alterar a história e mexer no mundo criado, à vontade. Mais ou menos como se supõe, no Cristianismo, que Deus faz na história. As histórias que C. S. Lewis começou a inventar bem antes de chegar aos dez anos foram seu primeiro laboratório para se tornar um escritor de ficção. E esse ambiente lhe deu certeza de que mitos são criados por alguém — ou seja, são inventados. Por conseguinte, não são verdadeiros como a narração de uma viagem éou pode e deve ser. Os mitos não são descrições de ambientes e situações reais que existiram e aconteceram em mundos diferentes do nosso, e inacessíveis a nós: eles são invenções humanas, destinadas a dar sentido à realidade que nos cerca e, assim, a explicá-la.

Nesse contexto, em que ele era uma criança feliz e sem maiores problemas, veio a morte prematura de sua mãe. A partir desse triste acontecimento, C. S. Lewis teve de aprender a lidar, sozinho e solitariamente,  com o sofrimento causado pela ausência súbita da mãe… O pai tinha o seu próprio sofrimento para resolver. E Lewis, sensível, tinha de aprender a lidar com tudo aquilo que o sofrimento do pai, subitamente viúvo, e tendo de terminar de criar dois meninos, causou em seu comportamento em relação aos filhos – em especial em seu maior distanciamento deles.

A criança foi obrigada pelos parentes a ver a mãe morta. E ouviu — e foi isso que lhe causou maior horror — gente dizer que a mãe dele estava linda no caixão. Diz ele:

“Até hoje não consigo entender o que as pessoas querem dizer quando afirmam que uma pessoa morta, no caixão, está linda. O mais feio dentre os homens, desde que vivo, é um anjo de beleza quando comparado com o mais lindo dos defuntos. . . .  A isso eu reagia com horror.”

Ele continua:

“A morte de minha mãe foi a ocasião em que, segundo alguns (mas não na minha própria opinião), eu teria tido minha primeira experiência religiosa. Quando o caso dela ficou extremo, e se perderam todas as esperanças, eu me lembrei do que me havia sido ensinado, a saber, que as orações feitas com fé seriam atendidas. Assim sendo, forcei-me a produzir, por pura força de vontade, uma crença firme de que minhas orações pela recuperação de minha mãe seriam atendidas. E, se viessem a ser atendidas, eu teria conseguido a recuperação dela! Quando, no entanto, ela morreu, eu mudei de ponto de vista e passei acreditar que um milagre ainda iria acontecer para trazê-la de volta. Mas o meu desapontamento não produziu nenhum outro resultado além de si próprio. A coisa não funcionou. Mas eu estava acostumado a coisas que não funcionavam e, por isso, deixei de pensar na questão. Creio que a verdade é que a crença, que eu havia como que sido hipnotizado a aceitar, era irreligiosa demais para que seu fracasso pudesse produzir em mim uma revolução religiosa. Eu havia imaginado um Deus, ou uma ideia de Deus, sem amor, sem temor, sem medo. Em minha imagem mental do milagre que eu esperava, Deus não era nem Salvador nem Juiz, mas apenas um mágico. E eu imaginava que, quando ele fizesse a mágica que eu esperava dele, ele simplesmente iria embora! . . . Com a morte de minha mãe, tudo que era uma felicidade tranquila e confiável em minha vida desapareceu. Eu iria ainda me divertir, ter prazeres, ter momentos de alegria. Mas a segurança que eu sentia antigamente, esta desapareceu por completo.  .  .  . “.

Aqui fala Lewis em 1955, ocasião em que já faz cerca de 24 anos que se converteu (ou foi convertido) ao Cristianismo. Tudo isso, e as experiências que ele em geral considerou horríveis, quando foi para a escola, cobraram o seu preço.

Um pouco de câmara rápida.

Depois de passar rapidamente, de 1908 a 1910, por duas escolas que ele detestou, Lewis mudou, em Janeiro de 1911 para uma escola chamada Cherbourg House (que, em sua autobiografia, ele chama de Chartres), em Malvern, Worcestershire, na Inglaterra. Ele até gostou um pouco dessa escola. Ele tinha 12 anos completos quando chegou lá (embora em sua autobiografia da primeira metade de sua vida, Surprised by Joy, capítulo 4, ele afirme que em Jan 1911, ele “tinha acabado de fazer 13 anos”, o que é um erro: ele havia acabado de fazer 12 anos em 29.11.1910). Ali, em Cherbourg House, diz ele, também em sua autobiografia, “realmente começa a minha educação“.

Enquanto frequentava Cherbourg House, Lewis admitiu “ter deixado de ser um cristão“. O momento em que ele descobriu isso não é identificado com precisão. Diz ele, na autobiografia: “A cronologia desse desastre é um pouco vaga, mas eu tenho certeza de que o processo não havia começado quando eu cheguei lá, e estava completo logo depois que eu de lá saí“. Lewis saiu de Cherbourg House (Chartres) em meados de 1913, para ir para o Malvern College, na mesma cidade — na verdade, quase em frente da Cherbourg House.

A partir de Setembro de 1913, Lewis estudou no Malvern College por um ano (ele detestou a escola, que seu irmão havia adorado), e em Setembro de 1914 foi estudar, em um sistema “one-to-one“, com um conhecido tutor, William T. Kirkpatrick, em Great Bookham, Surrey, Inglaterra. Kirkpatrick, um ex-presbiteriano, que havia se tornado ateu, havia sido tutor de seu irmão mais velho, Warren, garantindo que ele entrasse na Academia do Exército, como desejava, e, muito tempo antes, professor de seu pai, Albert Lewis, na infância deste. A experiência de estudar com Kirkpatrick foi marcante para o desenvolvimento intelectual de Lewis. Ele ficou lá até Abril de 1917.

Ao final de seus estudos com Kirkpatrick, em 12.10.1916, quando C. S. Lewis estava bem próximo de completar 18 anos, e estava a cerca de seis meses de concluir sua educação básica (pré-universitária), necessária para ele entrar na universidade, ele admitiu, em carta para seu único, e, por conseguinte, o melhor amigo de infância (Arthur Greaves), que ele era ateu — e declinou claramente as suas razões. Disse ele:

“Não acredito em nenhuma religião. Não há, absolutamente, nenhuma prova para nenhuma delas, e, do ponto de vista filosófico, o Cristianismo não chega nem mesmo a ser a melhor delas. Todas as religiões, isto é, todas as mitologias, vamos chamá-las pelo nome correto, são meras invenções do ser humano”. [Apud Green & Hooper, C. S. Lewis: The Authorised and Revised Biography, p.9; ênfases acrescentadas. Tradução minha.]

Fantástica e significativa essa passagem… Bem na linha do que foi dito atrás, sobre a gênese das ideias religiosas.

Não parece haver nenhuma dúvida aí. Se dúvida ele havia tido, ela já havia evoluído (ou, quem sabe, “involuído”) para uma certeza bastante firme: religiões não passam de mitos, que, por sua vez, são invenções humanas. Deus não existe, na realidade, sendo também uma criação humana. (Avento a possibilidade de que tenha havido uma “involução” porque, pessoalmente, acho preferível uma dúvida a uma certeza dogmática que pode estar errada.)

Isso foi dito, com todas as letras no final de 1916. Lewis chegou a Cherbourg House em Janeiro de 1911. Na autobiografia ele afirma que ainda era cristão quando chegou lá. Mas também afirma que, logo depois de ter saído de lá, em meados de 1913, o processo de descristianização estava concluído. Mas, possivelmente, ainda acreditava em Deus. A questão não fica clara. Nos três anos que se passaram entre Setembro de 1913, quando entrou no Malvern College, e Outubro de 1916, quando escreveu para Arthur Greeves, ele havia se tornado um ateu convicto e maduro.

3. Conclusão: A Questão da Verdade e o Desafio do C S Lewis Maduro

Vimos, na segunda parte do capítulo anterior, como Lewis “descobriu” o ateísmo e passou a aceitá-lo. Sua evolução intelectual aqui foi no “contexto da descoberta”. As razões que ele apresenta (mas não defende) para o seu ateísmo, na sua carta para Arthur Greaves, são:

  • Todas as religiões são mitos, e, portanto, não passam de invenções humanas;
  • Sendo inventadas pelo ser humano, não existem provas de que elas são verdadeiras;
  • A chamada “excepcionalidade” do Cristianismo não se justifica, porque o Cristianismo nem é mesmo a melhor das religiões.

Nos quinze anos seguintes de sua vida, dos 16 aos 31 anos, C S Lewis teve de viver e lidar com esta sua conclusão — operando, agora, no contexto da validação.

Para mudar de opinião, ele teve a alternativa de, ou de negar que todas as religiões são mitos e não passam de invenções humanas, sendo impossível considerá-las verdadeiras, ou, então, de, reconhecendo a verdade de que todas as religiões são mitos, encontrar, no caso do Cristianismo, uma excepcionalidade que justificasse a sua conversão para o Cristianismo.

Sua conversão foi progressiva, e em estágios. Ele reconheceu, primeiro, que faz sentido acreditar que haja uma força superior responsável por sustentar e controlar o mundo, em geral, e a nossa vida, em particular. Reconheceu, em segundo lugar, que essa força superior tem muitos aspectos em comum com o Deus dos Judeus e dos Cristãos. Faltava-lhe, agora, acreditar, em terceiro lugar, na história (estória?) de que essa força superior é pessoal, que é Deus, tem um filho, que esse filho se encarnou em um homem, Jesus de Nazaré, que, além de homem verdadeiro  também é verdadeiramente Deus, que a morte desse homem na cruz expia pecados, e que ele ainda vive, tendo sido ressuscitado por seu Pai e estando à sua mão direita nos céus, de onde um dia julgará os vivos e os mortos. Ou seja: a parte mais filosófica do caminho já estava percorrida no início de 1931. Mas faltava-lhe ainda percorrer a parte mais mitológica, e, por isso, mais difícil de considerar verdadeira. Negar que tudo isso fosse mito lhe parecia impossível.

Depois de uma longa conversa em 19.9.1931 (que atravessou a noite e chegou ao domingo 20.9.1931), com seus amigos J R R Tolkien, o autor de The Lord of the Rings, ele próprio um católico convicto e praticante, e Hugo Dyson, conversa que Lewis ficou ruminando nos dias seguintes, ele deu o passo que lhe faltava. Eis como ele o descreve, dois meses depois, em carta de 18.11.1931 para seu amigo Arthur Greeves (sempre ele!):

A estória (sic) de Cristo é simplesmente um mito verdadeiro: um mito que opera em nós da mesma forma que os outros mitos operam, mas com a tremenda diferença de que ela realmente aconteceu. [ . . . ] Essa estória é o mito de Deus, enquanto os outros mitos, os pagãos, são mitos de homens.” [Apud Green & Hooper, C. S. Lewis: The Authorised and Revised Biography, p.116; ênfases acrescentadas; tradução minha.]

Em outro artigo discutirei esse caminho árduo percorrido entre 1916 e 1931 e analisarei essa conclusão que C S Lewis chegou – que não é tão simples, nem tão fácil de justificar como ele faz parecer.

Em Salto, 8 de Julho de 2020