[Transcrito de meu blog Chaves Spaces, onde foi publicado uma semana atrás, em 15.11.2020]
Anteontem de madrugada (13.11.2020) assisti, mais um vez, ao belíssimo filme de Richard Attenborough, Shadowlands, que conta parte da história de vida de C S Lewis: sua vida pessoal na década de 1950, década esta em que ele conviveu com Helen Joy Davidman, que a partir de 1956/1957 se tornou sua mulher. Sempre me emociono profundamente vendo o filme. Lewis nasceu em 1898, deixou para se casar (diante de Deus e da Igreja, como ele colocava a questão) quando tinha quase 60 anos (em 1957 – 1956 foi o casamento apenas diante da lei e dos homens, ao qual ele não deu nenhuma importância), e ela, bem mais nova do que ele, morreu de câncer três anos e um pouquinho depois do casamento — e ele morreu três anos e um pouquinho depois dele… Lamento todos os spoilers para quem pretende ver o filme: faça de conta que você esqueceu pelo menos o que eu disse no último parágrafo…
No filme C S Lewis (isto é, o ator que o representa, o grande Anthony Hopkins) repete várias vezes que o ser humano não deve ter na vida o objetivo de ser feliz, porque não conseguirá alcançá-lo. Eis uma passagem típica que, no filme, é parte final de um sermão de Lewis (há tradução para o Português, de minha responsabilidade, na sequência das citações feitas em Inglês):
“Does God want us to suffer?
What if the answer to that question is YES? See, I’m not sure that God particularly wants us to be happy. I think He wants us to be able to love and be loved. He wants us to grow up.
I suggest to you that it is because God loves us that He makes us the gift of suffering. To put it another way, pain is God’s megaphone to rouse a deaf world.
You see, we are like blocks of stone, out of which the sculptor carves the forms of men. The blows of His chisel, which hurt us so much, are what make us perfect.
Thank you very much.” [Emphases added]
Em Português:
“Deus deseja que soframos?
E se a resposta a essa pergunta for SIM? Vejamos… Eu não estou certo de que Deus queira, particularmente, que sejamos felizes. Creio que ele quer que sejamos capazes de amar e de ser amados. E ele quer que nós cresçamos.
Gostaria de sugerir-lhes que é porque Deus nos ama que ele nos dá a dádiva do sofrimento. Colocando a coisa de outra forma, a dor é o megafone de Deus para fazer com que um mundo surdo acorde.
Vejam vocês, nós somos como blocos de pedra, a partir dos quais o escultor consegue esculpir as formas de um ser humano. Os golpes do cinzel divino, que nos causam tanto dor e sofrimento, também nos tornam perfeitos [perfeitamente humanos?].
Muito obrigado.” [Ênfases acrescentadas].
Outra passagem:
“We think our childish toys bring us all the happiness there is and our nursery is the whole wide world.
But something must drive us out of the nursery to the world of others — and that something is suffering.”
Em Português:
“Nós imaginamos que nossos brinquedos nos trazem toda a felicidade possível, e que nosso quarto de brincar é todo o mundo que existe.
Mas algo precisa nos cutucar para que saiamos de nosso quarto de brincar e que entremos no mundo em que existem outras pessoas — e esse algo é o sofrimento.”
Na verdade, Lewis, em alguns momentos, nos dá a impressão de que qualquer felicidade que a gente alcance na vida ou é aparente ou é algo supererrogatório. Este último termo, vindo do Latim, supererrogatório, se refere a algo que feito ou ofertado além do combinado. Algo como um dom ou uma dádiva. Vista assim, a felicidade é algo que não faz parte do combinado e que nos é dado além do trato. E ela é inevitavelmente construída em cima do sofrimento que invariavelmente nos acomete, e contrasta com ele, porque o sofrimento é parte essencial da vida e do plano divino para a humanidade: a felicidade (pelo menos nesta vida) é algo passageiro e acessório. É o sofrimento que nos ensina a viver, não a felicidade. A felicidade não nos ensina nada nem nos motiva a nada — pelo contrário. Como disse o Rubem Alves um dia, no título de um de seus livros, muito tempo depois de Lewis ter morrido, “ostra feliz não faz pérola“. A felicidade que o ser humano alcança, se tem sorte, é algo raso, sem graça, passageiro. Gente feliz é tudo igual, tem aquela cara de bobo que sorri à toa. Mas o sofrimento, não. Cada um sofre do seu próprio jeito… Como disse Leo Tolstoy no início do seu magnífico (mas complicado, como todos os livros dele) Anna Karenina, uma família feliz é igual a todas as outras famílias felizes [e por isso não dá romance dramático, como os de Tolstoy] — mas o sofrimento é sempre único, é personalíssimo: cada pessoa e cada família é infeliz do seu próprio jeito…
Diz o Lewis do filme:
“Twice in [. . .] life I’ve been given the choice, as a boy and as a man. The boy chose safety; the man chooses suffering. The pain now is part of the happiness then. That’s the deal.” [Emphasis added].
“Duas vezes em minha vida foi-me dado escolher como reagir, uma quando menino [na morte da mãe dele] e outra como homem [na morte de sua mulher]. O menino escolheu segurança [e virou ateu]; o homem escolhe sofrimento [pois já é cristão]. A dor agora faz parte da felicidade que virá depois. É esse o trato.” [Ênfase acrescentada].
Aqui Lewis (ou o personagem que o representa) inclui a felicidade posterior como parte do trato… Assim, ela deixa de ser superrogatória e passa a ser parte do combinado! Mas a felicidade que virá depois não é aquela que nos é concedida (supererrogatoriamente) agora, ao longo da vida aqui na Terra: ela será, futuramente, uma felicidade diferente, não hedônica ou hedonista — mas eudaemônica ou eudaemonista. Vide adiante.
A noção de que este mundo é “um vale de lágrimas” e que o nosso destino aqui é sofrer, não ser feliz, porque é sofrendo que a gente se aperfeiçoa e caminha na direção da perfeição (ainda que não chegue lá ao longo desta vida) é uma noção relativamente comum na história do pensamento cristão. Na realidade, essa visão tem sido usada como o núcleo central de uma teodiceia, isto é, defesa ou justificação de Deus face à existência do mal e, por conseguinte, do sofrimento no mundo. Essa defesa ou justificação tornou-se imperativa depois de David Hume ter argumentado da seguinte forma:
- O mal existe, em sua expressão tanto natural e como moral, isto é, tanto o mal que é causado por fenômenos da natureza, que por alguns são chamados de “atos de Deus” (terremotos, tornados, tufões, tsunamis, enchentes, raios que causam incêndios em florestas secas, etc.), como o mal que é causado por “atos de seres humanos” (agressões, assassinatos, revoluções, guerras, etc.);
- Se Deus existe, e é onipotente, ele tem poder e força bruta para fazer qualquer coisa (como dividir o Mar Vermelho em duas partes), e, portanto, inclusive para eliminar todo mal do mundo;
- Se Deus existe, e é onisciente, ele tem conhecimento, competência e habilidade para saber, e saber fazer, qualquer coisa, e, portanto, inclusive para eliminar todo mal do mundo;
- Se Deus existe, e é onibenevolente (infinitamente bom), ele certamente deseja eliminar tudo que é ruim ou imperfeito no mundo, e, portanto, inclusive todo o mal que causa estresse, agonia, dor, sofrimento, desespero, etc., para os seres humanos;
- Logo, dado que o mal existe, é forçoso concluir que ou (a) Deus simplesmente não existe, ou, (b) então, ele não possui pelo menos uma das três características destacadas por negrito nas premissas 2-4: ou não é onipotente, ou não é onisciente, ou não é onibenevolente, porque, (a) se fosse onibenevolente, ele desejaria eliminar todo mal, (b) se fosse onisciente, ele saberia como fazê-lo, e (c) se fosse onipotente, ele teria poder e força bruta de fazê-lo.
Evidentemente, é possível evitar a conclusão (enunciado 5) negando-se a veracidade de qualquer das quatro premissas (enunciados 1-4).
Há quem negue (Agostinho, por exemplo) a veracidade da primeira premissa, a saber, que o mal existe, afirmando que o mal não tem existência real, por ser simplesmente algo negativo, a carência do bem. Afirmar que o mal não existe para quem acabou de perder toda família em decorrência de um acidente de causas naturais ou humanas, como o da barragem de Brumadinho, é insultuoso e ofensivo.
Há quem negue a veracidade da segunda premissa, a saber, que Deus seja onipotente no sentido de ter poder e força de fazer qualquer coisa, porque, em primeiro lugar, ele não pode fazer o que logicamente impossível, como criar um triângulo quadrado, nem, em segundo lugar, também não pode remover algo que parece mal mas é condição necessária para um “bem maior”. Muita gente argumenta assim.
Há quem negue a veracidade da terceira premissa, a saber, que Deus seja onisciente no sentido de saber ou saber fazer, qualquer coisa, porque (à semelhança do que foi dito no parágrafo anterior) ele não pode ser capaz de fazer o que é logicamente impossível.
Há, por fim, quem negue, e o número de pessoas aqui é bem maior, a veracidade da quarta premissa, que afirma que Deus é onibenevolente. Quem assim pensa afirma que Deus pode permitir que os seres humanos sofram de alguma forma porque o sofrimento causado por ações de outros seres humanos é condição necessária para um bem maior, como, por exemplo, a existência do livre arbítrio. Esse argumento, embora interessante, não explica a existência do mal natural (não causado por outros seres humanos), embora também neste caso seja possível afirmar que o sofrimento, de qualquer tipo, é condição necessária para a depuração e o aperfeiçoamento do caráter e a conquista de uma vida plena de virtudes.
Em resumo é isso. O argumento de Hume, embora potente, não é irrespondível — se bem que as críticas feitas a ele também não são irrespondíveis.
A filosofia grega — em especial a de Aristóteles — séculos antes de essas teodiceias serem propostas no âmbito do Cristianismo — incluía uma visão de mundo que não permitia que esse problema surgisse. Para Aristóteles, independentemente de Deus existir ou não, o ser humano tem uma natureza que traz, embutida em si própria, o desejo de ser feliz, e que reconhece esse mesmo direito nos demais seres humanos que, pelo menos nesse sentido, são iguais uns aos outros.
Assim, parece haver um conflito de visões entre a Filosofia Grega Clássica (representada por Aristóteles) e o Pensamento Cristão acerca do direito de ser feliz, defendido pelos gregos, e a decisão de reagir ao sofrimento aperfeiçoando o caráter e buscando uma vida virtuosa, mesmo que infeliz.
Porém, esse aparente conflito não é tão grande como parece.
Os gregos distinguiam entre dois tipos de estado ou situação que são considerados como felicidade. De um lado, há a chamada felicidade hedônica, identificada pelo prazer de ver nossos desejos realizados e satisfeitos — ainda que esses desejos sejam imorais e, quando realizados, venham a prejudicar os outros. De outro lado, há a chamada felicidade eudaemônica, identificada pela realização de um projeto de vida significativo, que tem como base um caráter íntegro e firme, e que é levado a cabo com pleno respeito às virtudes e aos direitos das demais pessoas. Esse projeto de vida é alicerçado em um caráter impoluto e uma vida virtuosa — e sua realização deve ser vista como o píncaro da felicidade.
Comparando-se esta visão grega com a visão do C S Lewis do filme, pode-se constatar que o Lewis do filme mistura a visão cristã com a grega, ao admitir a existência, nesta vida, apenas de uma felicidade hedônica, de caráter supererrogatório, mas colocando nossa vida aqui, deste lado das coisas, como essencialmente regida pelo sofrimento que, no entanto, é preparatório (ou propedêutico) para uma felicidade muito maior e completa — mas no futuro (i.e., na vida futura). Sofremos aqui para podermos ser completamente felizes lá. “The pain now is part of the happiness then. That’s the deal.“
É um tema instigante…
Quem tem refletido muito sobre esse assunto atualmente é Martin E P Seligman, o criador da Psicologia Positiva — e também os seus associados. Vale a pena ler seus livros, em especial este, de autoria de Seligman e Christopher Peterson: Character Strengths and Virtues: A Handbook and Classification (Oxford: Oxford University Press, 2004). Para mais informação, vide meu blog Eudaemonia Space em https://eudaemoniaspace.wordpress.com/.
Em Salto, no dia 15 de Novembro de 2020, transcrito aqui em São Paulo, em 22 de Novembro de 2020, dia do aniversário da morte de C S Lewis, 57 anos atrás.