[NOTA: Este artigo é parte de um artigo maior, escrito em 2008, com o título “A Educação no Mundo Antigo e Medieval”. Tirei a parte que tratava mais diretamente da educação e mantive apenas a parte final, que procurava resumir a filosofia do mundo pré-moderno com a do mundo moderno. E revisei o material agora em Julho de 2020 para servir de fundamentação ao capítulo acerca da Educação em um livro sobre C S Lewis que estou escrevendo com meu amigo Carlos Eduardo Martins.]
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Não pretendo, neste trabalho, abordar o tema elaborando uma crônica de eventos ou pessoas relevantes à filosofia da Antiguidade e da Idade Média.
Também não pretendo historiar o que pensaram eminentes filósofos do Mundo Antigo e Medieval.
Vou fazer algo, de um lado mais ambicioso, mas, de outro, menos trabalhoso: tentar capturar a essência da contribuição do Período Pré-Moderno (que inclui o Período Clássico e o Período Medieval) para a filosofia de hoje — e, indiretamente, para a educação que hoje temos.
Assim, não farei pesquisa histórica, no sentido estrito, nem exegese e crítica textual. Procurarei me situar no plano filosófico para procurar captar o que me parece ser a essência da contribuição do Período Pré-Moderno para a filosofia. Para os meus propósitos, a despeito das evidentes diferenças existentes entre o Período Clássico e o Período Medieval, eles compartilham um substrato de ideias que me parece essencial.
Assim, ao discutir a Filosofia Pré-Moderna, resumirei o que me parece ser a principal contribuição desses dois períodos, o Clássico e o Medieval, em seu conjunto, para algo que transcende a educação, embora seja extremamente importante para ela: a visão de mundo. A Antiguidade e a Idade Média estão de certo modo unidas em uma visão de mundo extremamente importante, e que serviu por muito tempo de alicerce para a cultura e o pensamento ocidental (greco-romano-cristão), e que, lamentavelmente, corre o risco de se esvair nos ceticismos e relativismos de nossa época que se pretende multicultural, na qual a razão, como padrão objetivo, perde lugar para modismos intelectuais admitidamente arbitrários.
Vou discutir, portanto, de forma resumida, a contribuição da Filosofia Pré-Moderna à chamada Cultural Ocidental — contribuição que corre sério risco de esvair.
Para entender a Filosofia Moderna é necessário contrastá-la com a Filosofia Pré-Moderna.
Repito o que já disse: embora haja consideráveis diferenças entre a Filosofia Antiga e a Filosofia Medieval, e mesmo entre as diversas correntes que constituíram uma e outra, é possível detectar uma certa tendência básica que eu estou designando de Filosofia Pré-moderna, e que engloba elementos básicos e essenciais de uma e de outra.
Para a Filosofia Pré-moderna, em primeiro lugar, a existência daquilo que na Filosofia Moderna se convencionou chamar de “mundo exterior”, a saber, a realidade externa à nossa mente, claramente não é um problema. Para ela, é pacífico que existe um mundo fora de nossa mente, que é objeto de nosso conhecimento. Ninguém achava que isso precisasse ser demonstrado ou provado, porque não havia se tornado um problema.
Para a Filosofia Pré-moderna, em segundo lugar, essa realidade externa à nossa mente contém basicamente dois tipos de entidades: objetos (coisas) e fatos (o estado em que as coisas estão). Assim, objetos são coisas e fatos são estados de coisas. Tanto objetos como estados de coisas existem, na realidade: eles são descobertos, não constituídos ou construídos pela nossa mente. O pecado capital da Filosofia Moderna está contido na afirmação de George Berkeley, um bispo, que afirmou que esse est percipii: ser é ser percebido, ou seja, uma coisa ou um fato só é, ou existe, se é percebido pela nossa mente através de nossos órgãos sensoriais.
Além disso, e em terceiro lugar, para a Filosofia Pré-moderna o mundo exterior é objetivamente ordenado. A realidade não é composta meramente de objetos e fatos isolados uns dos outros. Objetos e fatos se vinculam uns aos outros, através de várias relações, dentre as quais a principal é a relação de causalidade. As relações das coisas e dos fatos entre si não são construídas pela nossa mente: elas fazem parte da realidade.
Assim, a relação de causalidade, para a Filosofia Pré-moderna, existe objetivamente na realidade: um evento realmente causa outro, e isto é um fato que pode ser constatado. A realidade não é composta apenas por “fatos atômicos” — evento a e evento b, por exemplo — mas também por fatos complexos — evento a causando evento b, por exemplo. A relação de causalidade, portanto, não é redutível à relação de contiguidade espaço-temporal que a nossa mente percebe entre coisas e fatos, como diria David Hume, já no período moderno (século 18). A realidade comporta também as relações entre os objetos e os eventos, entre si, e, por conseguinte, a relação — ou o nexo — causal.
Isto significa que o mundo possui ordem, e que essa ordem existe independentemente do ser humano. Não é o ser humano que impõe ordem à realidade, como presumia Emanuel Kant: a realidade já é ordenada, cumprindo ao ser humano apenas descobrir a ordem que já existe. É esse fato que possibilita o conhecimento — e, em última instância, a ciência.
A realidade, para a Filosofia Pré-moderna, portanto, contém fatos, atômicos e complexos. Esses fatos, como visto, são estados de coisas que existem, na realidade: são descobertos, não constituídos. Conquanto possam existir estados de coisas imaginários, fictícios, eles não devem ser descritos como “fatos imaginários”. Fatos são coisas reais.
Para a Filosofia Pré-moderna, em quarto lugar, a verdade é uma relação de correspondência ou adequação entre os juízos (ou afirmações) de um sujeito e os fatos que são objeto desses juízos. Se o juízo emitido por um sujeito corresponde aos fatos, ele é verdadeiro; se não existe essa correspondência entre o juízo emitido e a realidade, o juízo é falso. A realidade não é nem verdadeira nem falsa: ela simplesmente é. São nossos juízos acerca da realidade que podem ser verdadeiros ou falsos.
Para a Filosofia Pré-moderna, em quinto lugar, temos evidência da verdade ou da falsidade de nossos juízos através principalmente dos sentidos, pela percepção sensorial. E aquilo que nos é dado na percepção é nada mais, nada menos do que a realidade, propriamente dita, os objetos e os fatos que compõem o mundo externo a nós e suas relações. Embora seja notório que às vezes nos enganamos em nossa percepção, a essa constatação não se dá importância muito grande na filosofia Pré-Moderna. Erros de percepção, em regra, são facilmente corrigidos.
Para a Filosofia Pré-moderna, em sexto lugar, é possível, partindo dos sentidos, descobrir fatos sobre a realidade que transcende os sentidos: a chamada realidade suprassensível (ou o que comumente se chama de “sobrenatural”). Em geral, acreditava-se que era possível descobrir fatos acerca de Deus (por exemplo) pela chamada “via natural”, ou seja, apenas refletindo sobre os fatos descobertos pelos sentidos.
Para a Filosofia Pré-moderna, em sétimo lugar, o conhecimento é o conjunto de juízos verdadeiros e evidenciados nos objetos e fatos que compõem a realidade (sensível ou suprassensível). Para que haja conhecimento é necessário que haja um sujeito, que conhece, e um objeto, que é conhecido.
A Filosofia Pré-moderna não duvida de que tenhamos conhecimento da realidade: ela é plenamente confiante no conhecimento humano. Na verdade a confiança é tanta que ela pode falar, sem embaraço, em milagres. No período pré-moderno não há maiores problemas no conceito de milagre. Um milagre é um evento que, se ocorrer, suspende ou até mesmo viola a ordem objetiva existente na realidade. Para a Filosofia Pré-moderna, milagres, se de fato existem, acontecem no nível da realidade, e não apenas no nível de nosso conhecimento da realidade. Sua definição envolve referência ao plano ontológico e metafísico, não apenas epistemológico. Milagre não é apenas um nome para nossa ignorância da ordem (como diria Baruch Spinoza mais tarde): o milagre é uma suspensão ou violação da ordem objetiva existente na realidade, realizada por quem pode suspendê-la ou violá-la. Por isso é que se acreditava que milagres eram de suma importância: se de fato existem, eles provam alguma coisa. Falar em milagres, porém, não quer dizer acreditar neles. Se realmente aconteceram ou ainda acontecem, ou não, é outra questão. Nem todos os filósofos pré-modernos acreditavam que milagres aconteceram ou aconteciam. Mas não tinham dificuldade com o conceito.
Para a Filosofia Pré-moderna, por fim, e em oitavo lugar, a pedagogia é o processo através do qual a criança é levada a conhecer e a descobrir fatos, é o processo de condução do sujeito ao objeto.
A Filosofia Moderna, iniciada por René Descartes, e que encontrou seu ponto culminante em Emanuel Kant e George Hegel, passando pelos Racionalistas Continentais (Leibniz e Baruch Spinoza) e pelos Empiristas Britânicos (John Locke, George Berkeley e David Hume), infelizmente veio a questionar todos esses oito pontos – e esse questionamento não redundou em progresso, mas, sim, em regressão.
A filosofia era considerada, pelos pré-modernos, como a mais perfeita expressão da racionalidade humana.
Na Filosofia Moderna, entretanto, a razão é frequentemente utilizada para combater a razão. Dentro da filosofia moderna existe uma corrente irracionalista tão forte que, encontrou no século 20 um terreno fértil para a sua propagação. É a razão que perdeu o rumo, e que tenta agora demonstrar sua própria fragilidade.
As principais armas do irracionalismo são o ceticismo e o relativismo.
O ceticismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento não existem. Só existem pontos de vista, opiniões, crenças, coisas desse tipo. Mas nada disso é verdade, nada disso merece o título de conhecimento. Os pontos de vista que adotamos (se é que adotamos algum) são tão inválidos quanto quaisquer outros.
O relativismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento existem, mas cada época, cada cultura, ou mesmo cada indivíduo, tem a sua verdade e o seu conhecimento. O relativismo, no fundo, afirma que tudo pode ser verdade, dependendo do contexto. Quaisquer outros pontos de vista são tão válidos quanto os que adotamos.
Note-se que tanto o ceticismo como o relativismo apelam para sentimentos nobres.
O ceticismo tem sido o principal crítico do dogmatismo e do fanatismo. Como a verdade e o conhecimento não existem, não devemos nos apegar aos nossos pontos de vista (caso os tenhamos): devemos reconhecer a falibilidade de nossas faculdades de conhecimento, e, portanto, evitar qualquer dogmatismo e fanatismo.
Da mesma forma, o ceticismo tem sido o maior defensor da tolerância. Devemos tolerar os pontos de vista dos outros, mesmo os que nos parecem esdrúxulos e estapafúrdios, porque, embora careçam de fundamento, não estão em pior situação do que nossos próprios pontos de vista. Tolerar, neste caso, não é admitir que outros tenham o direito de aceitar pontos de vista esdrúxulos e estapafúrdios: é admitir que os pontos de vista dos outros são tão inválidos quanto os nossos.
Igualmente, o ceticismo tem sido um proponente da modéstia, da humildade, da ausência de soberba, da ausência de arrogância: tudo o que sei, dizem Sócrates e o cético, é que nada sei.
Os céticos são simpáticos: haja vista Hume, talvez o filósofo mais simpático que já pôs os pés sobre a terra. Revestindo-se desse caráter nobre, o ceticismo conquista as pessoas — e espalha o irracionalismo.
O relativismo também é uma filosofia simpática.
O relativismo procura convencer as pessoas de que os pontos de vista de outras pessoas (ou as ideias de outras épocas, ou de outras culturas) são tão válidos quanto os nossos próprios (ou quanto as ideias de nossa própria época, ou de nossa própria cultura).
Isso é assim, afirma o relativismo, porque as ideias são geradas em determinados contextos, e adquirem validade somente a partir daquele contexto. É inválido, portanto, criticar um ponto de vista a partir de um contexto que não é o seu próprio.
Assim sendo, não é válido (por exemplo) criticar o Budismo a partir do Catolicismo Romano, ou, na verdade, criticar qualquer religião, a partir de uma outra, ou mesmo a partir de um ponto de vista ateu. Todas religiões são boas, e até o ateísmo é uma forma de religião, às avessas, igualmente válida.
Por isso, também o relativismo propõe a rejeição do dogmatismo e do fanatismo e a adoção de uma postura tolerante. Tolerar, neste caso, não é apenas admitir que outros tenham o direito de aceitar pontos de vista esdrúxulos e estapafúrdios: é admitir que os pontos de vista dos outros são tão válidos quanto os nossos.
A arrogância, o sentimento de superioridade de nossos pontos de vista, a falta de empatia para com pontos de vista diferentes, tudo isso é pecado mortal para o relativismo.
Os relativistas também são, em regra, simpáticos. Muitos deles se embrenham por florestas quase virgens para estudar pontos de vista e costumes que os demais mortais poderiam considerar primitivos. Para o relativista, não há superior e inferior, quanto se trata de ideias, de pontos de vista, de cultura, enfim.
Revestindo-se desse caráter nobre, o relativismo também conquista as pessoas — e espalha o irracionalismo.
Na verdade, a maior parte das pessoas adota, hoje, um misto de ceticismo e relativismo, sem distinguir bem entre eles.
É por isso que o irracionalismo é hoje moda. Se a verdade e o conhecimento não existem, ou se tudo é verdade e conhecimento (em um determinado contexto), então não há como ser racional. Por que adotar este — e não aquele — ponto de vista? Por que defender este — e não aquele — ponto de vista? Por que criticar este — e não aquele — ponto de vista? Porque preferir esta — e não aquela — obra de arte?
A Filosofia Pré-moderna (antiga e medieval) sabia como resolver essas questões. A filosofia moderna desaprendeu de fazer isso.
Ser racionalista é, hoje, ser alvo de críticas, mesmo de ridículo.
A nossa é uma época em que se tornou lugar comum afirmar que a verdade é relativa; em que amplamente se acredita que, se duas pessoas discordam, isso significa apenas que a verdade de uma é diferente da verdade da outra; em que cientistas defendem a tese de que as teorias científicas nada mais são do que “paradigmas” semelhantes a dogmas religiosos (em relação aos quais já é costume dizer que todos são bons, desde que adotados com sinceridade); em que teorias e filosofias políticas são vistas como nada mais do que ideologias em conflito, reflexos superestruturais de infraestruturas econômicas alternativas, acerca das quais não cabe levantar a questão da verdade; em que escrever história é contar estória, isto é, construir a narrativa que mais bem nos convém; em que a moralidade se tornou uma questão de gosto, levando até um homem da estatura moral de Bertrand Russell a afirmar que sua discordância básica com Hitler se reduzia ao fato de que ele não gostava do que Hitler fazia; em que as linhas demarcatórias entre a arte, de um lado, e, de outro, borrões, ferro velho, lixo e outras excrescências desapareceram, porque as pessoas têm medo de emitir um julgamento estético; em que interpretações de um texto, por mais intuitivas ou estapafúrdias que sejam, são acolhidas com a mesma seriedade que as interpretações decorrentes de trabalho sério e rigoroso de exegese e hermenêutica; em que auto expressão se tornou sinônimo de criatividade; em que os contra sugestionáveis (se tanto) são tidos como espíritos críticos; em que a noção de verdade, por fim, se admitida, é vista apenas em termos da coerência de um conjunto de enunciados, e não de sua correspondência com a realidade.
As chamadas “Leis da Lógica” – andar dos mais importantes do edifício filosófico da Antiguidade e da Idade Média — são hoje desprezadas. Essas leis são as seguintes:
- Toda afirmação (inclusive teorias científicas, juízos morais e juízos estéticos), ou é verdadeira ou falsa (Lei do Terceiro Excluído);
- Nenhuma afirmação, devidamente qualificada, é verdadeira num contexto (temporal, espacial, social, cultural, econômico) e falsa em outro (Lei da Não-Contradição);
- O que é verdadeiro, é sempre verdadeiro; o que é falso, sempre falso (Lei da Identidade).
Também são desprezadas hoje teses metafísicas e epistemológicas fundamentais da Filosofia Pré-moderna, como, por exemplo, que eram essenciais na atribuição de sentido à vida:
- A primazia da realidade sobre os conceitos. A realidade existe independentemente de nossa percepção e de qualquer conceito que possamos formar sobre ela. Através dos sentidos, o ser humano apreende a realidade, não a constrói (Realismo Metafísico);
- A primazia dos conceitos sobre as palavras. É o pensamento que condiciona a linguagem, não vice-versa (Realismo Epistemológico).
- A ciência é objetiva e racional (contra os proponentes da sociologia do conhecimento e da sociologia da ciência);
- Existe conhecimento moral: julgamentos morais são verdadeiros ou falsos, e não são meramente emoções e sentimentos disfarçados de conhecimento (contra o chamado Emotivismo Ético, etc.);
- Existe objetividade na arte (contra o chamado Expressionismo, etc.)
No período pré-moderno havia uma atitude de abertura para com a busca da verdade e uma convicção básica de que a racionalidade é a melhor arma nessa busca. Tanto essa atitude como essa convicção foram perdidas no período moderno. A maior contribuição que a educação atual pode dar ao nosso mundo é recuperar algumas tendências da educação e da visão de mundo da pré-modernidade.
Essa é a principal tese de C S Lewis na área da educação.
Em São Paulo, Agosto de 2008, revisto em Julho de 2020, publicado aqui em 11 de Julho de 2020.
Eduardo Chaves é Ph.D. em Filosofia pela University of Pittsburgh, 1972. Professor Titular de Filosofia Política e Filosofia da Educação da UNICAMP de 1974 a 2007, ele está desde o início de 2007 aposentado da UNICAMP e desde 2017 aposentado de qualquer trabalho com vínculo empregatício.