Os que prestam alguma atenção ao que eu publico em meus blogs e posto aqui no Facebook devem ter percebido que estou trabalhando sobre a vida e a obra de C S Lewis. Lewis foi “Fellow” (pronuncia-se félou) no Magdalen College, da Universidade de Oxford, de 1925 a 1954, e, depois, de 1955 até sua morte, em 1963, no Magdalene College, da Universidade de Cambridge. Quem não conhece as estruturas organizacionais pode ter dificuldade para compreender os termos. Um “Fellow” é algo equivalente a um professor universitário. Aqui no Brasil, recebemos salário e somos chamados de Professores. Alguns são até contratados pela CLT… Em Oxford e em Cambridge, eles ganham uma “Fellowship” (algo que soa mais com uma bolsa do que com um salário) para fazer o que se espera deles: ler, pensar, escrever, de vez em quando dar preleções, e, especialmente, “tutoriar” os que ali vão estudar… Um College, dentro da Universidade, é uma unidade acadêmica. Em Oxford, hoje, há ao redor de 30 Colleges ou equivalentes. Eles têm, lá, uma enorme autonomia financeira, administrativa e acadêmica, inclusive para conceder “Fellowships” e aceitar Estudantes. Têm seus prédios próprios, que pertencem ao College, e não à Universidade. Poucas coisas são compartilhadas entre os vários Colleges. Mas há, por exemplo, uma Biblioteca comum: em Oxford, a Bodleian.
Uma palavra sobre o conjunto de termos relacionado ao processo de Tutoria. Uma das coisas que se espera de um Fellow é que ele seja Tutor de um certo número de estudantes de Graduação (no caso de Lewis, Bacharelado em Língua e Literatura Inglesa). Os alunos ingressantes têm, em regra, de 17 a 19 anos. Na época de Lewis, os alunos iam procurar os Fellows que lhes interessavam para pedir que eles os aceitassem como Tutoriados. Cada Estudante, ao longo de um período letivo, ou mesmo durante todo tempo de sua permanência na Universidade, tinha, na época de Lewis, um Tutor só — e se encontrava com ele só durante uma hora por semana, durante cada período letivo (que são três, de oito semanas cada). O resto do tempo, ler e escrever… Lewis costumava a dizer que o Estudante que não fica literalmente viciado em ler e escrever não tem como ser bem sucedido em Oxford… Lewis aprendeu até mesmo ler enquanto fazia caminhadas… 🙂
O Estudante, ao escolher seu Tutor, já devia saber, naturalmente, o que queria estudar (“ler”, como eles diziam) na Universidade: Os Clássicos (Gregos, Romanos e Cristãos), Filosofia (Era Medieval, Renascença, Idade Moderna, Período Contemporâneo), Língua e Literatura Inglesa (em algum período), etc. E devia conhecer (conversando com os alunos veteranos) as especialidades, as preferências e as manias dos Tutores. Se um Estudante for aceito pelo Tutor que preferia, perfeito. Se não for, tem de procurar outro. Cada Tutor, na época de Lewis, atendia a cerca de cinco alunos por dia — vinte e cinco ao longo de uma semana, durante as oito semanas de um período letivo.
Um parêntese. Um Fellow, em Oxford e Cambridge, é diferente de um “Professor” (pronuncie-se em Inglês, por favor, com um acento agudo no “e”). Um Proféssor, lá, é algo mais parecido com o que era o nosso Professor Catedrático, aqui, que não existe mais. Talvez seja meio parecido com um Professor Titular, mas o Titular, aqui, não é dono de uma cadeira (que aqui também não existe mais): aqui pode haver vários Professores Titulares numa área só, como Filosofia Política. Lá, não. Há distinções, mas não vale a pena esmiuçar. Lewis foi para a Universidade de Cambridge em 1955 porque Cambridge, em 1954, criou uma cátedra especialmente para ele (Medieval and Renaissance English and Literature), e o elegeu para ela, humildemente convidando-o para se dignasse a ocupá-la. Ah, eu ficaria honrado com uma coisa dessas… Ele, naturalmente, também ficou — e aceitou. Bom para ele. Como Proféssor ele só precisava ler, escrever e dar preleções magnas. Não precisava tutoriar ninguém. Lewis havia estado em Oxford por quase 35 anos — 30 como Fellow e, antes, cinco como Estudante — e Oxford nunca se dignou a elegê-lo para uma de suas cátedras. Sempre o esnobou. Os frescos de Oxford achavam que ele, por escrever também livros populares, para crianças e adolescentes, bem como para pessoas leigas interessadas no Cristianismo, livros esses que faziam enorme sucesso, não era digno de ser Proféssor lá. Oxford perdeu-o. Perdeu Oxford, não Lewis.
Ao dizer que Lewis se tornou Proféssor em Cambridge e, como tal, não precisava tutoriar ninguém, pode-se ter a impressão de que ele estivesse doido para não mais “dar aulas”. (A gente geralmente pensa que tutoriar é dar aula, é ensinar – veremos que não é). Mas haverá um engano se se pensar assim.
Os ex-alunos de Lewis em Oxford são virtualmente unânimes em elogiar sua dedicação, seu preparo, seu conhecimento, sua atenção a eles. Um de seus ex-alunos, Derek Brewer, escreveu que a impressão geral que ele causava em seus Tutoriados era de que ler, falar, e discutir um assunto — no caso, Língua e Literatura Inglesa — eram, para ele, nada menos do que a vida dele… Ler, falar, e discutir eram importantes porque eram as principais formas de aprender, na visão dele. E “learning“, para ele, era “a way of life“, nada menos do que um jeito de viver. Ele vivia e respirava “learning“: aprendizagem, aprendência, tornar-se capaz de saber e saber fazer o que não sabia e não sabia fazer… E essa aprendizagem ou aprendência, que lhe era tão natural como forma de viver, contagiava seus estudantes. Segundo um de seus Tutoriados, Lewis, como tutor, não ensinava, não protagonizava, não se punha no papel de sábio no palco (“sage on the stage“): tutoriar, para ele era algo muito diferente de tomar a palavra e discorrer sobre o assunto durante os sessenta minutos que duravam o tutorial. Quem falava, no tutorial, era o Estudante. Era ele que tinha a palavra. Era ele que precisava protagonizar. Ele tinha de, toda semana, apresentar um Ensaio, com o resultado de suas leituras… E em cada semana, Tutor e Tutoriado conversavam sobre o que o Tutoriado estava aprendendo com suas leituras e reflexões. Ao final da sessão, o Tutor recomendava alguns textos, por vezes livros inteiros, que o Tutoriado deveria ler ao longo da semana seguinte, pessoas com quem poderia conversar, etc., e ambos acertavam o que o Tutoriado deveria trazer para ser discutido na sessão seguinte, dali uma semana. O Tutoriado tinha sete dias inteiros para se preparar e para redigir o “Ensaio” que seria discutido no encontro seguinte, e se preparava do jeito que achava melhor: lendo, refletindo, conversando com outros colegas e outros Fellows que se dispusessem a lhe dar atenção, assistindo a preleções que, dependendo do assunto e do preletor, podiam ter uma plateia de 250 ou de apenas três ou quatro… Na discussão do Ensaio, na semana seguinte, o Tutor ouvia e o Tutoriado lia o Ensaio. Na sequência, o Tutor fazia perguntas, comentários, críticas, sugestões, indicava ao Tutoriado novas leituras, novos ângulos de abordagem, novas perspectivas, e ambos combinavam o que seria feito ao longo da semana que iria começar na sequência do final daquela seção. E o Tutoriado ia embora e voltava na semana seguinte com um novo Ensaio… — ou, se assim tivesse sido combinado, com o velho Ensaio, “recauchutado” ou “repaginado”!
Os Tutores e os Tutoriados moravam, ambos, ali na Universidade. Os Tutores tinham seus apartamentos, nos quais havia uma sala grande e alta, com lareira, mesa, sofás, na qual liam, escreviam, recebiam seus colegas e os Tutoriados. Embora houvesse auditórios para preleções, não havia “salas de aula”: as conversas entre o Tutor e o Tutoriado eram na sala de estar do Tutor, que podia morar com tranquilidade na universidade porque, em regra, era celibatário (se não fosse, ele morava na Universidade durante a semana e a família, fora). Os Tutores não tinham “escritórios” (offices), muito menos secretárias, computadores, redes de comunicação de alta velocidade… Os horários dos tutoriais eram marcados previamente, mas para falar com o Tutor para tirar uma dúvida não era preciso marcar hora com sua secretária, que inexistia: bastava ir até o apartamento dele e esperar a ocasião entre um tutorial e outro, ou o fim dos tutoriais do dia.
Mas o mais importante é o que Derek Brower, ex-Tutoriado de Lewis, comenta:
“O Tutor típico era um homem solteiro, que morava na Universidade, para quem ‘learning [was] a way of life‘. Ele lia, escrevia, comia, dormia no seu apartamento, e era ali que ele recebia seus Tutoriados, porque era ali que ele vivia e trabalhava, não em um escritório, com uma secretária ao lado, ou em salas de aula, com auxiliares e assistentes. O que ele fazia ali, ler, pensar, conversar, escrever, não era nem ’emprego’ nem ‘lazer’ nem ‘diversão’: era tudo parte de uma vida unificada. [ . . . ] Quando em companhia dos seus Tutoriados, o Tutor não ‘ensinava’. Os dois conversavam e discutiam como pessoas que tinham interesses comuns em um assunto que cativava a ambos. Não era um relacionamento exata e totalmente igualitário, mas havia entre os dois uma unidade de propósitos, aprender mais sobre algo que interessava a ambos, e esse fato constituía entre eles a base de uma igualdade fundamental. O status e a idade deles diferiam bastante. Mas não tenho nenhuma dúvida de que, no meu caso com Lewis, embora eu tivesse apenas dezoito anos, e houvesse, além da disparidade na idade, uma enorme diferença de inteligência, habilidade, temperamento, e reputação entre mim e aquele senhor distinto e jovial, nós éramos pessoas de uma só espécie, engajadas numa mesma busca. E a razão pela qual eu me sentia assim quando estava com ele sem dúvida tinha que ver com a forma com que Lewis me tratava: para ele eu não era um escolar a ser ensinado e, quem sabe, disciplinado, mas um homem que vinha até ele para ler e discutir junto com ele um assunto que nos interessava aos dois. E ele me tratava assim como igual a ele com toda a naturalidade, como se nem sequer lhe passasse pela cabeça que o tratamento pudesse ser diferente.” [ Em C. S. Lewis at the Breakfast Table and Other Reminiscences, editado por James T. Como, 1979, 2a edição de 1992, p.42. A partir da terceira edição o livro passou a se chamar Remembering C. S. Lewis: Recollections of Those Who Knew Him e ganhou um novo prefácio pelo editor – https://www.amazon.com/gp/product/B00307D3WM .]
E há gente que não entende como pode haver educação superior de qualidade — da melhor qualidade — sem um artista na frente de uma sala de aula despejando informações dentro da cabeça dos alunos, sem um currículo enciclopédico que obriga, em alguns casos, os alunos a ficarem quase quarenta horas por semana sentados em uma carteira dura ouvindo um dadeiro de aula falar. Cabe perguntar: quando é que se espera que esse aluno aprenda alguma coisa?
Em Salto, 21 de Julho de 2020